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A ética que vale apenas para alguns
A ética que vale apenas para alguns

Gustavo Hofman Gustavo Hofman  06/04/2013 09h31

 

A ética que vale apenas para alguns

 

Getty
Paolo di Canio com uma faixa do Sunderland em sua apresentação oficial
Paolo di Canio com uma faixa do Sunderland em sua apresentação oficial

"Nas relações cotidianas entre os indivíduos, surgem continuamente problemas como estes: Devo cumprir a promessa x que fiz ontem ao meu amigo Y, embora hoje perceba que o cumprimento me causará certos prejuízos? Se alguém se aproxima, à noite, de maneira suspeita e receio que possa me agredir, devo atirar nele, aproveitando que ninguém pode ver, a fim de não correr o risco de ser agredido? Com respeito aos crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados que os executaram, cumprindo ordens militares, podem ser moralmente condenados? Devo dizer sempre a verdade ou há ocasiões em que devo mentir? Quem, numa guerra de invasão, sabe que o seu amigo Z está colaborando com o inimigo, deve calar, por causa da amizade, ou deve denunciá-lo como traidor? Podemos considerar bom o homem que se mostra caridoso com o mendigo que bate à sua porta e, durante o dia - como patrão - explora impiedosamente os operários e os empregados da sua empresa? Se um indivíduo procura fazer o bem e as consequências de suas ações são prejudiciais àqueles que pretendia favorecer, porque lhes causa mais prejuízo do que benefício, devemos julgar que age corretamente de um ponto de vista moral, quaisquer que tenham sido os efeitos de sua ação?" 

Este é o primeiro parágrafo do livro "Ética", em que o autor, Adolfo Sánchez Vázquez, coloca problemas práticos e reais, questões cotidianas, diante do leitor. Perguntas éticas. 

Não é fácil ser ético, e ainda mais complicado é cobrar ética de todos. Trazendo a discussão para o mundo esportivo, a ética é colocada à prova na vida de atletas, técnicos e dirigentes o tempo todo. A cada partida, a cada disputa, a verdade, a lealdade são questionadas. É a velha história do bem contra o mal. Trago o assunto para ser debatido por causa da contratação de Paolo di Canio pelo Sunderland. O novo técnico dos Black Cats, antes mesmo de assumir o cargo, gerou enorme repercussão negativa por causa de suas supostas posições ideológicas. Ele é acusado de ser fascista. 

Primeiro é importante entender o que significa fascismo. O economista Lew Rockwell explica de maneira moderna assim: "O fascismo é o sistema de governo que carteliza o setor privado, planeja centralizadamente a economia subsidiando grandes empresários com boas conexões políticas, exalta o poder estatal como sendo a fonte de toda a ordem, nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos e torna o poder executivo o senhor irrestrito da sociedade." Já o acadêmico italiano Umberto Eco vê várias formas de fascismo, entre elas: "O Ur-Fascismo cresce e busca consenso, explorando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou prematuramente fascista é um apelo contra os intrusos. Assim o Ur-Fascismor é racista por definição". 

Paolo di Canio, italiano de 44 anos, ex-jogador de Lazio, Juventus, Milan, Celtic, West Ham, entre outros, tem um passado polêmico. Em 2005 admitiu em uma entrevista ser fascista, após por várias vezes comemorar seus gols diante da facção ultra-direitista de torcedores da Lazio. Disse: "Sou fascista, não racista". Em sua auto-biografia, afirmou que Mussolini foi "basicamente uma pessoa de muitos princípios e muito ética", além de ter sido "profundamente incompreendido". 
 
EFE
Di Canio, em sua época de jogador da Lazio, faz saudação nazi-fascista
Di Canio, em sua época de jogador da Lazio, faz saudação nazi-fascista

Após todo barulho com sua contratação, o Sunderland divulgou um comunicado no qual Di Canio se defende. "Acredito nos meus pilares e tenho valores. O que me ofende mais do que qualquer coisa não é porque isso me afeta; é porque afeta algo meus pais me deram: os valores. Isso não é aceitável". Na longa nota, ele alega também que "algo pode ter acontecido muitos anos atrás, mas o que contam são os fatos... Minha vida fala por mim. É claro que isso tipo de coisa me machuca porque as pessoas tentam tirar minha dignidade e isso não é justo". Por fim, tenta esclarecer: "Nunca tive problemas no meu passado. Eu dei muitas entrevistas durante muitos anos e algumas coisas foram feitas da forma mais conveniente para a mídia. Falar de racismo? Isso é absolutamente estúpido, é estúpido e ridículo. Na Inglaterra os meus melhores amigos eram Trevor Sinclair e Chris Powell, o técnico do Charlton ­ eles podem falar sobre meu caráter". 

É possível chegar à conclusão de que muitos dos que criticam Di Canio não sabem o que é fascismo. Confundem problemas. Além disso, a imprensa inglesa passou a se preocupar com o treinador italiano somente agora, quando ele assumiu um time da primeira divisão. Enquanto ele estava no comando do Swindon Twon, escondido na quarta divisão, não havia problema. Nem mesmo o título que garantiu o acesso ao clube mereceu maior atenção. Até então, ele era tratado apenas como "alternativo", "curioso". Agora virou um problema. 

Que ética é essa? Que ética é essa que só vale para alguns? 

Trago um exemplo nosso, do futebol brasileiro. Certa vez, Luiz Felipe Scolari fez elogios ao ditador chileno Augusto Pinochet, que como Mussolini, foi responsável por milhares de mortos. No dia 11 de maio de 2005, participou do Roda Viva da TV Cultura. O jornalista Juca Kfouri, companheiro dos canais ESPN, lhe questionou sobre o tema. Diálogo abaixo e toda entrevista ipsis litteris aqui

"Juca Kfouri: Você se arrepende de ter feito aquele elogio ao Pinochet, que tanta crítica te custou, ou não? 
Luiz Felipe Scolari: Não, não porque algumas pessoas levaram para outro lado. O que eu vou fazer, o que penso não é assim? Se eles querem levar que levem. Eu quis dizer que o Pinochet fez muita coisa para o Chile, iniciou uma nova etapa no Chile. Agora, quantos que ele matou lá no estádio, eu não sei. Para chegar num ponto bom, num ponto que o Chile cresceu, alguma coisa tinha que ser feita, foi ele. Iniciou, fez a parte boa, fez a parte ruim, a parte ruim eu não conto, eu só conto a parte boa. Eu fiz um elogio de que foi assim. Aí os caras disseram que eu sou do regime tal, eu não sei nem que regime existe. Quem sabe seja até uma alienação minha ruim. Mas eu sou ainda a pessoa, não vejo partido, não vejo regime, não vejo nada. Só fiz um elogio pelo que eu conhecia do Chile. Até hoje de noite eu vou jantar com um chileno que esteve lá no Grêmio, o Cristian Lopes, que é um empresário, uma pessoa que me recebeu no Chile muito bem: 'Olha, depois do Pinochet nós começamos isso, começamos aquilo, nosso índice de analfabetismo foi ótimo, nós melhoramos a nossa situação financeira'. 'Está bom, e o errado?' 'O errado nem te falo'."

Cito Felipão, mas poderia citar outros personagens polêmicos, como Chico Anysio. O comediante amado por todo Brasil escreveu o seguinte, às vésperas da Copa do Mundo de 2006, em texto publicado no Lance! em que analisava a seleção de Carlos Alberto Parreira: "Não tenho confiança em goleiro negro. O último foi Barbosa, de triste memória na seleção". 

Autoritarismo, racismo, fascismo, nazismo. Tudo isso deve ser condenado. Tudo. Não importa se a pessoa é mal encarada e cheia de tatuagens, se é campeã do mundo ou tem um talento incrível para o humor. Recorro mais uma vez a Adolfo Sánchez Vázquez: "O ato moral pretende ser uma realização do 'bom'. Um ato moral positivo é um ato moralmente valioso, e é tal exatamente enquanto o consideramos 'bom'; isto é, encarnado ou plasmado o valor da bondade. Mas o que é bom? Ao responder a esta pergunta, a maioria dos tratadistas de moral pretendeu encontrar o bom em geral, absoluto, intrínseco e incondicionado; o bom em todo lugar e em todo tempo, em todas as circunstâncias, seja qual for o ato moral de que se trate ou a situação concreta em que se efetue. Partindo da verificação de que os homens, comportando-se moralmente, aspiram ao bem, isto é, a realizar atos moralmente bons, tenta-se dar uma resposta universalmente válida à pergunta sobre o bom". 

O Sunderland tem sido pressionado a demitir Paolo di Canio, que assinou contrato por dois anos e meio. David Miliband, vice-presidente do Conselho de Administração, pediu demissão do cargo após a chegada do treinador italiano. Miliband é um político local também. Ele, certamente, conhece os valores ideológicos e políticos de todos no clube, os quais sem dúvida alguma, e sem exceção, estão dentro do conceito de bom descrito no parágrafo acima. 

Analisando todo pacote, ou seja, considerando questões éticas, morais, esportivas e de marketing, eu não contrataria Paolo di Canio para o meu clube. Mas por que só ele é demonizado? Por que em outros casos as duas primeiras questões são relevadas? É muito fácil apenas criticar.